Geração
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A Bela e a fera
para Marianna Quando o pobre pai – que era rico e ficou pobre – arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio, rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e [querida, a gota de sangue que há em cada poema tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão, e a mão que agarrada aos espinhos transformava aos poucos seu braço-membro em [braço-rosa. Nesse instante, sem que soubesse de onde, nem como, [nem por quê, surgiu-lhe no peito a dor habitual dos grandes abandonos: tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera, e a fera em solidão. Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase [humanos, que, às vezes, numa voz de bicho, outras, numa voz de homem, prometia promessas de quem tem a propriedade de ser [bicho-homem, e ameaçava castigos só imagináveis na imaginação de [um homem-bicho. O monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e [o monstro-fixo trouxeram para a fera a filha mais nova e querida que era [Bela; as irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só pelos [ciúmes, gostaram, como muitas outras de outras histórias de [irmãs novas e velhas, que a delicada menina preferida dos zelos e dos [cuidados de seu velho pai, ? antigo mercador falido por ganância no antigo [deserto das sombras imperiais –, gostaram, pois, como dizia, que a doce, terna e meiga [humanidade da criança fosse entregue à sanha e ao apetite – assim pensavam – da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da [estranha criatura. Contudo, a menina que rapidamente na viagem se [tornava em moça, e a moça que empurrava o corpo para ser mulher logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a [monstruosidade da fera eram muito menos do que algo em si – uma essência ou [uma substância –, e muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser, [uma carência, alguém – se dizê-lo não for contraditório – feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra, mas da triste humanidade ausente do homem que não [era. A menina-moça, à força de querer-lhe a natureza [fazê-la outra, primeiro veio-lhe o reconhecimento, depois, a [compreensão de que o destino a pusera não só no fluxo de sua [própria vida, mas na vida dos símbolos que sempre andam solidários [na alheia solidão. No dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa, deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes [perdas e sofrimentos; as irmãs invejosas também sofreram o desalento de ver a [bela irmã mais nova viva, livre – assim pensavam, sem perceber-lhe a alma [cheia de tormentos. O pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse, mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de [hábito a fera a chama, a chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera [se acabava. Abalada em sustos, por muito pouco não ficou em casa, [cheia de saudades da mãe, que não conhecera; se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio das [outras filhas, suas irmãs, dizem que seu destino seria sempre ficar entre: não ser menina, ser quase moça, não ser mulher. Porém, decidida e corajosa, como dizia, e como de fato [era feito seu caráter, espantou-se do torpor e célere correu por serras, [fantasias, vales e desterros: foi sendo atriz da própria personagem, fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em [erros, fez-se narrador de seu próprio texto. Quando chegou à terra em que seu pai quase sem querer [desatou-lhe o nó da vida, ao apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha dona [de seus zelos, viu, num canto do jardim, junto aos roseirais, que a [fera, exaurida em suspiros, soluçava fundo: era uma figura imponente como um fero monte de [plagas tormentosas, era grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo [em rosas. Entre a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo, beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios, o que foi bastante para o desencanto: tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer. Assim, acabou-se a história: do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra, a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido, pela [mãe ausente, pelas irmãs cruéis, transformou-se em rosa, rosa de sangue, que se fez [mulher. |