Metalurgia
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Replicantes
Era ele a criatura de quem sempre ouvira falar nos sonhos faladores, um homem tão misterioso, disfarçado e vago que tudo o que era, era só o que aparentava ser. Alguém feito ? se é que este passado verbo pode aplicar-ser de fato à sua constituição ? de um dizer mais seu, feito, pois, na falta de melhor clareza e na esperança de evitar ofensa pela insistência na repetição, do movimento pendular do outro na direção do eu. Um homem ? talvez não seja este o termo mais adequado para expressar-lhe a estranha humanidade ? de quem não é mentira dizer que tivesse a constante veleidade de ser sempre mais do que se sentia sendo embora, na verdade, não pudesse chegar sequer à metade do sonho em que vinha vivendo. Era muitas coisas, não na substância densa do corpo e dos miasmas, na forma sim de muitas alterações provocadas por alteridades ao acaso; um vento, uma lembrança, uma promessa torpe, uma ameça honesta, um vaso, e ei-lo como cobra-cega, criatura de Borges, anfisbena, com o movimento contido em duas direções opostas: a que vai para o norte na coragem da alegria que lhe resta, a que sai para a noite na voragem escrita de sua pena. Criatura de existência negada nos compêndios, a mudança persistente levou-o muitas vezes além, a classificar-se antes entre os animais que não existem do que entre as formas utópicas que quase soem estar aquém. Carregou, convicto, o estigma da referência negativa, dubiedade decorrente de ser, nessas ocasiões, um ser inteiriço, totalmente estruturado na dialética do sem: sem embaixo, sem em cima, sem na frente, sem atrás, sem esquerda, sem direita, sem centro, sem periferia, negado, pois, pela lógica dos binarismos constritores, não por ser imóvel, sendo simultâneo em direções opostas, mas sobretudo por ser notável a contrariedade de ser com extremidades ambiguamente ambas anteriores. Nome não tinha, embora resmungasse num latim bárbaro extensas listas monótonas como novenas de criminosos maus, ora fantásticas, ora taxinômicas pela fantasia; por redundância de sons, aliterações, metáforas, paronomásias, soavam como rimas de bigorna batendo cadencialmente a escansão do caos. Era um ser interessado, porque inexistente de população, não habitava o céu, a terra, o sol, o mar, a lua, nenhuma realidade vizinha, contínua ou desconexa, pasto ou areal, nenhum beco, apartamento, casa, cortiço, barraco, rua, fazia exercícios de virtudes em contrariedades, era virtuoso e penitente em contradições, nenhum texto sagrado, profano, erótico, poesia, prosa, verso, estante, livro aberto, gastura, nenhuma realidade ilusória, nenhuma ilusão do real. Às vezes, por descuido, por galhofa, ou por penúria, vivia entre os homens caçadores, vestia-se de preto, de cavalo branco na tela do cinema, de armadura de couro, corria habilidoso trancado em si no pastoreio de securas. Hoje sei que continua a cavalgar as falas dos sonhos predadores, excede o ritmo, o andamento, o verso a música sem metro, falta-lhe o movimento andante do eu na direção do outro. |