Metalurgia
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A menina e a nuvem
para Daisy Como espantar nuvens de promessas, não essas que a gente fica criança olhando no telhado da garagem, tampouco as nuvens que são chamas escuras de ameaças, aquelas sim, também as outras, que a gente coça nos olhos de viagem? Como recortar com os dedos o origami da imaginação, a dobradura do monstro identificado sem identidade, o gato félix, a montanha baixa, a baixa do sapateiro, o coqueiro que dá coco, o planalto dos sentimentos, a vida feliz, o cão? Como plantar roseiras que crescem tudo a que tem direito o armazém da terra, rosas inclusive, lembranças fofas, vermelhas rosas, espinhais pontudos, não crescem o pai que as plantou com as mãos, embora sejam, como em vaso mudo de mudas plantas que falam tudo, a espada e o escudo, a escada e a hera da solidão? Como estar ali na janela, com o pescoço na guilhotina, contar pessoas como carneiros cortam sonhos em anedotas e nada o sono que não vem, lendo gibis de botas, cresce sinistro o alfaiate a moldar direito o terno que me incumbe a nuvem da derrota, a roupa de domingo, que me passeia sério e tonto na boba adequação de ser certeiro, tataranho e ébrio? Ser correto e composto ao cruzar as portas dos aniversários, o mesmo quadro geométrico define apenas o atentado do glacê de bolo; atesta ser de transparente linha a cruz da igreja, a prefeitura, o largo, a praça da matriz o alvo, o dardo, a vida da cidade socializada e pronta para o exercício prático de estar, de um lado, solidária, de outro, sempre estar sozinha. Sei que aos olhos cabe ver o que vê o tato, embora cegos e poetas só contornem dedos, dedilham sombras num piano bêbado, sentem a luz como um volume sob a noite densa de buracos saldos, onde habitam o monstro e a mocinha, os mesmos dois que, sendo diferentes, divergem na plena coincidência de serem um, ou melhor dito, são um do outro, são um de dois, e por serem ambos cristalizam a idade milenar da guerra, camadas caras de geopaciência, cada camada depura o pó do tempo, que é pós depois. Todas as canções inutilmente põem no colo a infância da coragem, não como a menina séria que coleciona nuvens no telhado dos sonhos, nos sonhos de telhagem, é só como ter tudo e ser infante sempre, guardar anal e anualmente o livro-ponto do comparecimento, aparecer nas ilhas como um continente, ser conteúdo e forma como a alegria ou como um lamento, ser pirata, enfim, vampiro, sanguinário ao navegar a língua no doce em calda da pilhagem. Nas gavetas do cofre, o menino dos recados: colecionar as fotos, os selos, as figurinhas, os maços de cigarros, guardar nas mãos o estremecimento gozo da primeira e fundamental punheta, ser o vaso, a flor, o móvel que os sustenta, sustentar a dor imóvel e mole como um planeta. Como, então, recortar direito, se o tesouro é serra, a montanha é mar, água complexa de si mesmo e terras, que submergem lembranças, lembrar que o tempo é solidez e líquido, é barco iníquo tripulado de bandidos, é bando aéreo de água insana embarcada em ar? Os meus desenhos reescrevem a caligrafia da primeira assinatura, têm pose de bonés que acenam de palanques, duram o segundo em que se plantam os moirões da alma, são velhas damas com máscaras de debutantes, assinam em branco os cheques pré-datados da dúvida, conservadores e dúbios como estátuas de flagrantes, vivem sozinhos, revolucionários, torpes e dignos como prumos, mordem revoltas e investidas com os dentes da calma, são covardes e audazes como soldados de chumbo. Como expor no corpo os ossos do ofício, como estancar a água que é constante arte, artifício de esconder do tempo a engenharia retórica que lhe é própria, próprio do tempo que ao fingir ser morto mata no outro o espelho e o brilho? Espantar nuvens como moleques, passarinhos, acumular ninhos de algodão como se fossem cúmulos, sem estilingues, pedradas, só com o gesto de espreguiçar a pontaria: mirar na vida, raspar na sorte, acertar em túmulos. |