Novos poemas
|
Palavra de poeta
Há palavras que chovem − são enxurradas como cristais correntes em ameaças de fluidez, chovem caudais de serenidade nos impropérios que vociferam formalidades de polidez. São, em geral, palavras − grito, só que contido na vestimenta sem cerimônia do dia-a-dia, dizem, parecem, são outra coisa, se não as mesmas, fazem, ressurgem, fintam, atravessam, vivem, se agitam, fingem-se estátuas de tropelia, falam do tempo do foi-já-era como um disfarce do era-já-foi-será-outra vez. Palavras transparecem o mundo que em espelho refletem, não como o espelho que exibe a segunda alma do refletido, tampouco no espelho a segunda natureza a quem faz falta a primeira como o martírio apaixonado de um Narciso, cujo reflexo instantâneo criasse a ilusão do real aumentando no iludido a certeza da verdade às vezes como coisa em si, outras como coisa e tal. Há palavras que não dizem, antes indicam como dizer, mostram, apontam, são gestos, dão o sentido, são infelizes fora do curso que as próprias palavras tem de percorrer. Não são palavras unívocas, inequívocas, centradas em representar estados de coisas, mas coisas apresentadas em estado de composição, não são binárias, literais, explícitas, diretas, são flechas para quem navega o sem rumo do discurso e que em meio à imensa noite imprevisível do destino adia suas esperanças para os portos de destinação. Palavras que, tal a beleza, são promessas de felicidade, confundem quem for usá-las com o uso que de si mesmas fazem, são palavras recorrentes, dobradas sobre palavras, tudo o que dizem do outro é pura cabotinagem, sinceramente enganosas levam a buscar perfeição, não no que dizem e confiam, mas no prazer da linguagem; com tal zelo despistam quem se aproxima do que revelam e escondem que o máximo do desvendamento é outro secreto desejo de permanecer abrigadas à luz da revelação. Não há palavras sem palavras para acompanhar-lhes a soberania de serem só palavras remetidas umas às outras, quando desfilam na imaginação dos rios do mundo a corredeira das águas rasas, às vezes claras, que atropelam as imagens à semelhança de um fazer-de-conta, palavras travestidas em fatos disfarçados em correspondências entre a superfície sonora e o conteúdo profundo; palavras que esticam palavras como um puxa-puxa da infância, que são ponte entre distâncias, distantes como um apelo, não têm meio, fim, ou começo só tem ponta e contraponto como um conto, uma parlenda, um canto pranto de desterro. Há palavras inverossímeis que não se parecem com nada, por mais ditas que sejam, ocorrem sem compromisso, mais parecem estranhas à língua a que pertencem e que por pertencer lhe conferem, por natureza congênita, a estranha familiaridade de serem reconhecidas e negadas. Não são, contudo, expulsas, por mais esquisitas que sejam, pois quanto mais diferentes, mais tem o ar de família, são palavras poucas ou muitas − depende de quem as achar quando lidas, escritas, ou inventadas; não estão, em geral, disponíveis, para encontros fortuitos em cada esquina da escrita, tampouco para escrevê-las sem mais nem menos por isso, palavras que não são palavras mas que parecem demais e que, por serem, parecem coisas que existem na vida desde que nela não existam, ou, se existem, sejam iguais. Há palavras resistentes, duras, blindadas, fortes por dentro e por fora secas como a honestidade abrupta do silêncio, palavras antes e depois do uso voltam à condição de forma acabada e sendo tudo o que não são por significar o outro, tudo o que são em si mesmas, além de sons, tudo o que dizem − que é muito ou pouco − sobre o diferente é simples exercício do pouco a pouco para voltar ao nada. Palavras seguem palavras de quem se ama não se ama mais apesar das circunstâncias, palavras em monumento, palavras que perdem e calam na garganta o lamento, palavras iguais e diversas nas diferenças, iguais, palavras contra e a favor do tempo, palavras das horas mansas na mansidão dos quintais, palavras que são lembranças que olham adiante sem ré, palavras de rei com retorno de gente que não volta atrás, palavras que coçam a língua grudadas no céu-da-boca como um bicho-de-pé, palavras que silenciam o silêncio do vazio enchem de assunto a conversa do ocupado vadio, por mais palavras que haja para falar de palavras, sobram palavras com asas que voam soltas ao vento. |