Paisagem doméstica
|
Geração
Arrancam-me o silêncio como se arrancassem paralelepípedos da rua sabem como não sei que este é meu único último segredo aquele trazido úmido do ventre verde de imemoriais montanhas querem me fazer gritar mostrar não fosse já interjeição falar por derradeira frase alada dizer meu silêncio vibra em choques meu corpo escorrega em lamacentas correntes de delírio pedras arrastando a consciência mutilada do perigo não podem porque não posso é o que me resta de todas as bravatas heróicas de todos os futuros que suportaram tédios passados a ferro e esperança há intervalos deixam então meu corpo ? este fardo inútil de delação ? atirado ao canto surdo de suas feridas virão mais tarde daqui a pouco e tudo recomeçará aprenderam comigo que a expectativa da dor é sofrimento maior que a dor presente por isso me deixam abandonado ao fantasma de minha obstinação alongam o silêncio que os trará de volta como feras saltando a escuridão é um silêncio instrumento feito de vozes ao longe de passos ecos no corredor é um silêncio alfinete cheio de portas batendo não o silêncio batente não o silêncio segredo tampouco o silêncio reposta nem o silêncio silêncio mas o silêncio medo não há mais expedientes quase sobram alguns como o me pensar criança e ir refazendo em detalhes uma história fantástica na qual a vida tivesse outro curso e meu corpo jovem com a sua própria idade derivasse ao largo: barco intangível de confrontos consigo ainda recolher-me as chagas sinto devagar ir remontando a fruta falham-me os casos é verdade e mais só o que resulta ao recascar a luta é uma fruteira onde se esquece a tenra pele de uma pedra madura não desisto deixo-me acompanhar este repouso de pedra na correnteza de um rio cascalho na corrente de um córrego pedra pontuda que as águas vão arredondando à força de passar o tempo pedra sem flechas pedra amolada no fio das águas pedra quando batem à minha porta ? meus deus eu já disse minha ? sei quem é: o carcereiro de minhas lembranças cuja função além de guardar-me como bem compete à sua atividade é cercar a pauladas a insolência de meu pensamento que pode acaso vazar de sua contensão as paredes nos garantem um do outro é pouco tanto quanto me obstino a ficar mudo menos muda sua obsessão o ritmo das pancadas as mãos os pés alternam-se com freqüência a interposta porta vive de nuanças: não fecha mais do que ameaça abre-se entanto para se lembrar fechada é minha porta porque dela fui despossuído faltam-me chave fechadura trinco tranco-me a ela como a um sortilégio tenho um instante uma ilusão de frestas ao invés de preso vejo-me defendido alguma vez resiste em mim o que me levou ao ponto procuro aí socializar o fato dificilmente evito nessas ocasiões o ver-me herói desta experiência contada em goles em qualquer bar da moda sofro recuos um passo em falso será o abismo vertigem da palavra e tudo estará perdido agarro-me pronto a precipitar o discurso à curvatura de meu corpo encolhido: a força que me desdobra no tempo é menor que a dor que reflui em silêncio nunca sei ao certo quando voltarão mas voltam sempre quando estou dormindo talvez para me surpreender no inconsciente a história que lhes recuso acordo com a presença pesada de pés ao lado de minha cabeça imóveis à espera de minha rendição subo penosamente os olhos pelas suas pernas ventre peito no topo de meu esforço sacos negros escondem suas caras quantos são? muitos se descarnados no entusiasmo da tortura poucos quando adoçados de investidas retóricas complacentes ou serei eu o encapuzado? senão de onde virá esta dificuldade em respirar esta noite imperiosa e quente que me abraça no silêncio frio do cimento como uma auréola azeda uma coroa de vômitos um ruído seco de mastigação apodrecendo os dentes? o que virá em seguida é uma cena cuja marcação falas e deixas conheço de cor meu corpo tocado pelo bico das botas se fechará primeiro perto do impossível até que ao ritmo frenético de pontapés e injúrias se abra todo num despregamento roto de gritos e gemidos acho que não se importam mais com o risco de minha morte menos ainda com a possibilidade cada dia mais remota de eu sair e exibir em jornais televisão em praça pública as marcas de sua minha punição sentem-se impunes no seu desvario noturno sabem também eu que não sairei há contudo um equívoco neste saber repartido escavam o meu silêncio e o tratam como se fosse uma disciplina aprendida que é preciso romper fazendo saltar do grito o nó da voz escondida desmontam-me como um programa didático de resistência pretendem chegar ao centro da força que me determina embrulham-me o sofrimento em folha de jornal usado em página lida e relida mas meu corpo devastado é ainda meu corpo silêncio nele tudo o que existe é a solitária vitória de que serei exilado na morte que o cristaliza um tiro sem bala abafado uma justificativa de vida |